terça-feira, 19 de junho de 2007

A implicação da ONU em crimes de guerra
– por Hans-Christof von Sponeck, entrevistado por Silvia Cattori-

Para o antigo secretário adjunto da ONU, Hans-Christof von Sponeck, as Nações Unidas, longe de velarem pelo respeito pelo direito internacional e pela consolidação da paz, tornaram-se um factor de injustiça.

As sanções impostas ao Iraque de Saddam Hussein provocaram um desastre humanitário; e tratados como o da não proliferação de armas nucleares são utilizados para assegurar o domínio de uns e ameaçar outros.

Já é tempo de mudar radicalmente de sistema.

O conde Hans-Christof von Sponeck, nascido em Bremen em 1939, trabalhou durante 32 anos no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Nomeado em 1998, por Kofi Annan, para o posto de coordenador humanitário das Nações Unidas no Iraque, com a categoria de secretário-geral adjunto, Sponeck demitiu-se em Março de 2000 em sinal de protesto contra as sanções que haviam reduzido o povo iraquiano à miséria e à fome.

Eis de seguida as suas respostas às questões de Sílvia Cattori, para a Réseau Voltaire.

Sílvia Cattori: No seu livro "Um outro tipo de guerra: As sanções da ONU ao regime do Iraque" [1] , acusa o Conselho de Segurança de ter traído a Carta das Nações Unidas .

Poderia dar-nos alguns exemplos precisos de situações em que o Secretariado das Nações Unidas actuou de modo condenável?

Hans von Sponeck: O Conselho de Segurança deve actuar conforme a Carta das Nações Unidas; não deve esquecer a Convenção sobre os direitos da criança, bem como os aspectos gerais desse tipo de convenções.

Quando o Conselho de Segurança sabe que as condições de vida no Iraque são inumanas, que as pessoas de todas as idades se encontram numa profunda desgraça, não por causa de um ditador, mas por causa da sua própria política de acompanhamento no quadro do programa "petróleo por comida", e por causa das excepções humanitárias, e ainda assim nada faz – ou não faz o suficiente – para proteger as populações das más consequências da sua política, podemos e devemos afirmar que o Conselho de Segurança é culpado.

E é culpado em particular pelo forte crescimento das taxas de mortalidade no Iraque.

Como prova disso, vejamos a seguinte situação: nos anos oitenta, sob o governo de Saddam Hussein, a UNICEF revelava que 25 crianças em mil, menores de cinco anos, morriam no Iraque por diversas razões.

Durante os anos de aplicação das sanções, entre 1990 a 2003, verificou-se um rápido crescimento da mortalidade de crianças com menos de cinco anos: passou para 56 em mil, logo no início dos anos 90, e atingiu as 131 em mil, nos primeiros anos do novo século.

Qualquer um de nós pode facilmente compreender que esse aumento da mortalidade entre as crianças foi consequência das sanções; parece-me evidente que o Conselho de Segurança preferiu ignorar as consequências da sua política no Iraque, sob pressão dos principais intervenientes envolvidos, em particular, os Estados Unidos e o Reino Unido.

Silvia Cattori: Como é que o Conselho de Segurança pôde negligenciar as consequências humanitárias das sanções contra o Iraque, e ao mesmo tempo adoptar outras resoluções – a 1559, por exemplo – que abriram caminho ao bombardeamento de populações civis?

Isso levar-nos-ia a dizer que o Conselho de Segurança e o Secretariado da ONU se tornaram, nos últimos anos, os principais responsáveis pelas catástrofes humanitárias?

Hans von Sponeck: Eu diria que apenas os ignorantes, ou aqueles que não aceitam a derrota, continuam a fazer de conta que o drama humanitário no Iraque não se deve, em grande medida, a uma política errada, a uma política de punição.

O povo iraquiano foi punido simplesmente porque se encontrava sob a direcção do governo de Bagdad, apesar de totalmente inocente.

Sílvia Cattori: Os nossos responsáveis políticos, presentes em todas as instâncias internacionais, sabiam perfeitamente que essas sanções tinham consequências desastrosas. Podemos, então, dizer que ao calarem-se, eles aceitaram que os civis morressem de fome?

Hans von Sponeck: Não podemos esquecer que houve silêncio, mas também conivência, apoio, ou melhor, um esforço deliberado para se criar o género de condições que prevaleceram no Iraque durante 13 anos de sanções.

Há, de facto, diferentes graus de responsabilidade política.

Não se trata apenas do Primeiro-ministro da Grã-Bretanha, do Presidente dos Estados Unidos e dos seus governos, existem outros responsáveis.

A Espanha e a Itália tiveram um papel de apoio que torna os seus governos da época responsáveis.

Aznar em Madrid, e Berlusconi na Itália são altamente responsáveis pela sua contribuição para o desastre e para o drama humano que teve lugar no Iraque.

Eles não aceitarão concerteza essa responsabilidade, mas as evidências estão aí.

Sílvia Cattori: Se a manipulação do Conselho de Segurança pelos Estados Unidos é o maior problema, e se estes últimos continuam a cometer crimes, sob o pretexto de terem um mandato das Nações Unidas, o que poderá ser feito para corrigir esta situação?

Hans von Sponeck: Penso que essa é uma questão muito importante e particularmente pertinente no quadro do debate sobre o tipo de Organização das Nações Unidas de que necessitamos para protegermos a comunidade internacional, para protegermos os 192 governos dos Estados membros, dos perigos a que certos governos os expõem ao abusar da sua autoridade, das sua informações, das suas finanças, do seu poder, para servirem os seus próprios interesses, ao mesmo tempo que vão contra os interesses da paz, da justiça, da humanidade.

Sílvia Cattori: Como é que reagiu à execução de Saddam Hussein e dos que com ele foram condenados à morte por um tribunal formado pelos Estados Unidos?

Hans von Sponeck: Digo-lhe desde já que não me surpreendeu.

Era o objectivo final dos que estão no poder em Bagdad e dos que ocupam o Iraque.

Não podemos defender Saddam Hussein, mas podemos levantar-nos contra o facto de ele não ter tido um julgamento justo, e de termos estado perante uma farsa.

Foi um tribunal que, sob a aparência de respeitabilidade, mascarava a decisão preestabelecida de condenar os acusados à pena de morte.

Saddam Hussein, como qualquer outra pessoa, tinha direito a um julgamento equitativo, e esse julgamento equitativo, ele não o teve, de facto.

É claro que fiquei perturbado por essa evidência.

Apesar de existir um direito internacional, apesar de as nações europeias, os Estados Unidos e o Canadá, bem como outras nações, afirmarem incessantemente que querem defender a justiça, na realidade, não o fazem.

Sílvia Cattori: Você interveio junto de Bush para pedir a libertação de Tarek Aziz.

Chegou a obter uma resposta?

Hans von Sponeck: Não. Eu não obtive uma resposta.

Escrevi essa carta porque conheci Tarek Aziz.

O meu antecessor e eu tínhamos uma relação cordial com Aziz, considerávamos que ele era uma pessoa que – apesar do que se disse dele nos principais jornais – se preocupava com o povo iraquiano.

Uma pessoa disponível e disposta a tomar em consideração propostas que visassem melhorias no programa de assistência humanitária.

Do nosso ponto de vista, do meu ponto de vista, ele era uma pessoa correcta.

Eu não posso julgar o que Tarek Aziz fez no Iraque fora do meu domínio de responsabilidade mas tudo o que eu peço é que uma pessoa doente, nem que seja apenas por razões humanitárias, seja tratada dignamente; ela deveria ser autorizada a ter um acompanhamento médico e a beneficiar de um julgamento justo.

Tarek Aziz tinha e tem direito – tal como Saddam Hussein – a ser tratado de acordo com o direito internacional, com as convenções de Haia e de Genebra.

Eu oponho-me ao facto de, passados três anos depois da sua entrega voluntária às forças de ocupação, ainda não terem sido apresentadas provas contra ele, e que o mantenham na prisão, tendo necessidade de acompanhamento médico.

Sílvia Cattori: Agora que a situação criada pela ocupação do Iraque é aterradora, há um forte receio de que a resolução contra o Irão seja utilizada pelos Estados Unidos para atingir esse país.

A marinha alemã – formalmente sob mandato da ONU – já se encontra no Mediterrâneo oriental.

É por saber até que ponto o seu país está implicado nos projectos de guerra dos Estados Unidos que você, numa carta aberta, pede a Merkel que recuse qualquer recurso à força contra o Irão?

Hans von Sponeck: Exactamente. Eu vejo bem que, gradualmente, a Alemanha e outros países europeus são levados a seguir um caminho no sentido de uma política de potência definida em Washington por pessoas ávidas de poder.

E essa situação torna-se cada vez mais grave, porque vendo que não conseguem sozinhos pôr em marcha a sua política de dominação, eles procuram o apoio de outros governos; ora, esses governos parecem ser da Europa Central e da Europa de Leste, entre a Lituânia e a Grã-Bretanha.

Além disso, procuram também politizar a NATO para a utilizarem como um instrumento, que ela já é em grande medida, ao serviço dos Estados Unidos.

Daí que eu, como qualquer indivíduo normal neste mundo, não possa aceitar as tentativas – apoiadas pela chanceler Merkel, por ocasião da recente cimeira da NATO – que visam dar a essa aliança militar uma missão política.

A NATO é um instrumento da Guerra Fria; desde há muitos anos que se lhe procurava dar uma nova missão, um novo papel.

A única coisa que os membros da Aliança sabiam é que ela tinha uma responsabilidade militar, e que com o fim da Guerra Fria na Europa, essa responsabilidade deixava de existir, não era mais necessária.

Daí esta procura desesperada de um novo papel.

Entrevista continua aqui... http://resistir.info/iraque/sponeck_mar07_p.html

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