domingo, 24 de junho de 2007

Entrevista com Ignácio Cano sobre o Iraque

Por Flávia Mattar - IbaseNet 28/03/2003 às 20:51

O Iraque aceitará a ocupação norte-americana após a guerra?
O que está ocorrendo com a democracia?
O mundo tem dono?
Acabado o conflito, fica fortalecido o terrorismo mundial?

São muitos os questionamentos que rondam a guerra dos EUA contra o Iraque.
E as previsões podem não ser animadoras.
O sociólogo Ignácio Cano, professor e membro do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, esteve no Iraque pouco antes da guerra e traz para o IbaseNet sua análise das conseqüências do conflito para o futuro da humanidade.

IbaseNet – O que mais chamou a sua atenção no contato com a população iraquiana?
Ignácio Cano – Não era fácil falar abertamente com o povo iraquiano, já que vive sob um regime de forte controle. Mesmo assim, consegui conversar com algumas pessoas, que declararam que, embora não gostassem do regime de Saddam Hussein, entre o ditador e os norte-americanos, preferiam o ditador. Ao mesmo tempo, vimos várias manifestações favoráveis ao governo, mas eram muito organizadas.
IbaseNet – Estaria ocorrendo um fortalecimento de Saddam Hussein com a invasão?
Ignácio Cano – Os norte-americanos, que estão lá atrás do petróleo, não são bem- vindos e não serão tratados como libertadores. Acredito que a invasão externa faz com que o povo iraquiano se sinta agredido, e esse é um fator que reforça Saddam internamente. Há uma longa tradição de resistência iraquiana contra o inimigo externo. É muito provável que mesmo que os EUA vençam a fase militar, encontrem resistência contínua até que saiam do país. Para se ter uma idéia, alguns opositores iraquianos, que estavam fora de sua nação, demostraram o desejo de voltar e ajudar na luta contra o invasor. O perigo da coalizão agressora não é só o militar, mas sobretudo o perigo político. Os norte-americanos entraram no Iraque para encontrar armas de destruição em massa e para libertar a população. Se as armas não aparecerem e a população está claramente oposta, as justificativas para a guerra caem por terra.
IbaseNet – A iminência da guerra deixou claro o descompasso entre a vontade popular (as manifestações pela paz) e as decisões políticas. O que pensa sobre isso?
Ignácio Cano – Isso está se constituindo em um teste para a própria democracia. Embora sejamos democracias representativas, uma decisão tão importante quanto ir à guerra não pode ser tomada contra a vontade majoritária dos cidadãos. A Espanha e a Itália estão passando por uma situação quase de conflito civil, os ministros são chamados de assassinos quando vão às ruas. Estão começando a falar, na Europa, em derrubar governos, o que não é algo muito europeu. Já há várias ações de desobediência civil, como ataques a sedes de partidos e pessoas que ficam em frente a sedes do governo para impedir entrada e saída. Uma coisa parecida acontece no mundo árabe, só que lá não há democracia. Dessa forma, não é um xeque à democracia, mas é uma sensação de que os governos, apesar de teoricamente defenderem a unidade árabe, na verdade fazem o jogo de Washington. Os governantes do mundo árabe estão preocupados com os problemas internos que essa situação pode acarretar.
IbaseNet – As manifestações populares pela paz também são uma resposta à tentativa de unilateralismo dos EUA, não?
Ignácio Cano – O que estamos vendo é uma guerra contra o resto do mundo. Nos países em desenvolvimento, isso cria uma sensação de vulnerabilidade muito grande, surgindo assim uma maior simpatia pelo Iraque. Na Europa, fica ressaltada a idéia de que estão sendo levados a escolher entre uma adesão incondicional aos norte-americanos – o que foi feito pelo primeiro-ministro britânico Tony Blair, primeiro-ministro espanhol José María Aznar e primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi –, ou adotar uma posição européia independente, de respeito pela legalidade internacional. Trata-se de uma situação-limite para os órgãos internacionais, para a lei internacional e para a legitiminidade das intervenções. Esse episódio vai marcar o futuro da humanidade. Lembraremos da guerra do Iraque como um marco.
IbaseNet – Como ficam as Nações Unidas? Serão convidadas a reconstruir o Iraque?
Ignácio Cano – Acredito que sim, aliás isso tem acontecido depois dos conflitos. Após a entrada das forças norte-americanas, a União Européia e as Nações Unidas costumam ser chamadas, como eles dizem, para limpar os restos.
IbaseNet – É uma situação complicada, já que as Nações Unidas e algumas nações européias não foram ouvidas na hora da decisão sobre a guerra...
Ignácio Cano – Há países na Europa que não querem dar um tostão para a reconstrução, já que essa é uma guerra a qual eles sempre se opuseram. Ao mesmo tempo, se os norte-americanos controlarem todo o processo de construção e administração do Iraque, isso vai implicar um novo colonialismo. Ressaltaria ainda o perigo da ocorrência de guerrilha urbana contra os norte-americanos, já que o povo iraquiano irá oferecer, ao que tudo indica, resistência. Os norte-americanos têm uma visão muito estreita e, ao que parece, não têm noção das complicações em que estão se metendo, entre elas, o problema do Norte do Iraque, quase uma nação à parte, com a vontade dos curdos de criarem um Estado independente. Nesse sentido, acho possível que as Nações Unidas sejam chamadas para tomarem conta do difícil processo de reconstrução e administração do Iraque e da suposta construção de uma democracia. O que os norte-americanos pretendem? Abrir daqui há seis meses um escritório do Partido Democrata Iraquiano e outro do Partido Republicano Iraquiano, instalando assim a democracia? A democracia não nasce das bombas e não será construída de um dia para o outro. É preciso se criar uma estrutura social para isso.
IbaseNet – No III Fórum Social Mundial, o lingüista Noam Chomsky disse que a atitude dos EUA acabaria por acirrar o terrorismo no mundo e fazer com que as nações começassem uma corrida para se armar, representando assim um perigo real, como a Coréia do Norte. Essas são, na sua opinião, previsões certeiras para o futuro?
Ignácio Cano – Infelizmente sim. Em primeiro lugar, fica a noção de que não interessa o que você fizer. Se você for inimigo, será alvo, portanto, por que se conter? Em segundo lugar, acho que fica claro que se os norte-americanos atacam o Iraque, eles não têm limite. Então, por que o resto do mundo tem que ter limites contra os norte-americanos? Escutei muitos comentários de pessoas que hoje falam do ataque às Torres Gêmeas de forma diferente. Obviamente que foi terrível o que aconteceu, mas agora, escuta-se: "foi terrível, mas..." Há certamente um incentivo para uma corrida especialmente nuclear e o mundo começa a perceber que os únicos países que serão respeitados são aqueles que têm armamento. Esse é um elemento muito perigoso para as relações internacionais, da mesma forma que cria a noção de guerra preventiva. Segundo a própria noção dos EUA de guerra preventiva, agora se justificaria mandar um míssil contra a Casa Branca, para pôr fim a um regime que já mostrou que é agressivo e que está esnobando a legalidade internacional. Eles acabaram de legitimar um ataque contra a Casa Branca, contra qualquer militar norte-americano no mundo. O terrorismo certamente ficará reforçado nessas condições. O grande vencedor foi Osama bin Laden, que conseguiu arrastar os norte-americanos ao terreno que queria. O antiamericanismo nunca foi tão forte no mundo. Os EUA são vistos mais e mais como agressores perigosos, como uma ameaça à paz mundial.
IbaseNet – O que acha da posição brasileira com relação à guerra?
Ignácio Cano – Posição razoável. Na verdade, entendemos que o governo Lula tem suas limitações e dificuldades. Os governantes norte-americanos e britânicos deveriam ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional pelo crime de agressão. Os EUA não ratificaram o tratado, mas a Inglaterra sim. Isso ninguém está dizendo, mas é o que os governos deveriam dizer. Acho também que o governo Lula deveria ter chamado de volta seu embaixador em Washington. Vivemos em um mundo unipolar, onde o poder dos EUA é muito grande, mas é importante que tomemos posições firmes, caso contrário estaremos aceitando que esse poder fique cada dia mais sem limites e isso é muito perigoso.
IbaseNet – O que pensa sobre a cobertura jornalística da guerra?
Ignácio Cano – Vejo mais os canais internacionais, porque oferecem dados mais detalhados, já que estão sobre o terreno da guerra. Um diferencial é que, desta vez, os jornalistas internacionais estão avançando com as tropas. O ponto negativo disso é que acabam incorporando a visão desse meio, que certamente é imparcial. Muitas informações que foram dadas desde o front estão sendo desmentidas. Há também um tratamento desigual. Quando o Iraque mostra prisioneiros, é acusado de violar a Convenção de Genebra. Já quando os prisioneiros iraquianos são mostrados pelas televisões ocidentais, ninguém fala da Convenção. IbaseNet – Qual a importância da al-Jazeera (poderosa rede de TV com grande penetração no mundo muçulmano) nesse processo de informar (ou desinformar)?
Ignácio Cano – Muitas vezes, os meios de comunicação tendem a reproduzir, mesmo que inconscientemente, a visão dos ocidentais. A al-Jazeera mostra a visão do outro lado, e isso é extremamente perturbador. Não é por acaso que foi proibida de trabalhar na bolsa de Nova Iorque. Pela primeira vez, coisa que não ocorreu em 1991, as populações árabes podem, pelo menos as que têm TV a cabo, ver a al-Jazeera e outras emissoras, tendo uma visão mais abrangente do conflito.
IbaseNet – A mídia acaba sendo usada também como ferramenta de guerra, como meio para que sejam passados recados, não é mesmo?
Ignácio Cano – O vice-ministro iraquiano, por exemplo, pediu que os regimes árabes cessem a sua cooperação com os agressores e parem de fornecer o petróleo para a Grã-Bretanha. Essa é uma mensagem extremamente poderosa porque repercute nas populações árabes cujos governos formalmente são contra a guerra, mas na prática acabam seguindo, em maior ou menor medida, as diretrizes de Washington.
IbaseNet – No Brasil, quando ligamos a TV para assistir o noticiário sobre a guerra, temos a impressão de "comercial de armas superpoderosas". A que se deve isso?
Ignácio Cano – Isso tem acontecido em todas as televisões e jornais do mundo. No caso do Brasil, uma explicação é a situação de grande insegurança pública em que vivemos. A maior parte da violência é cometida com armas curtas, mas os jornalistas entram no depósito de armas da polícia e só querem ver as AR-15 e bazucas. Há um certo fascínio pelas armas permeando a imprensa, principalmente quando se trata de armas de destruição em massa, supostamente precisas. Cada míssil de cruzeiro custa quase US$ 1 milhão. O custo desta guerra, só em termos de armamento sofisticado, é altíssimo e será pago por todo mundo, com o petróleo iraquiano, através dos impostos norte-americanos. Os principais beneficiados são os fabricantes de armas, que terão que renovar todos os estoques.
IbaseNet – E o mercado de construção norte-americano, não será beneficiado?
Ignácio Cano – As empresas norte-americanas receberam uma dose de keynesianismo bélico [referente à teoria do economista britânico John Maynard Keynes sobre a relação entre políticas governamentais e econômicas em tempos de recessão]. Os EUA estão destruindo o Iraque e depois suas empresas serão chamadas para a reconstrução, com o dinheiro do petróleo dos próprios iraquianos. É o fim da picada.

http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/03/251262.shtml

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