domingo, 1 de julho de 2007

GUERRA CONTRA IRAQUE ENVIOU MENSAGEM DOS EUA AO MUNDO

(foto: Bombas em Bagdá)


Guerra contra Iraque enviou mensagem dos EUA ao mundo

Marco Aurélio Weissheimer-





Invasão do Iraque foi um acerto de contas que não ocorreu no final da Guerra Fria.


Com ela, os EUA enviaram uma mensagem às grandes potências, diz o professor José Luís Fiori.


O segredo para entender esse caráter estranho do conflito, segundo Fiori, talvez esteja em ver o ataque dos EUA como uma guerra de sinalização.


“E o sinal principal não foi para os iraquianos ou para os movimentos terroristas internacionais, mas sim para outros atores políticos que não estão necessariamente no Oriente Médio.


Em suas duas conferências na capital gaúcha, ele analisou o sentido desses sinais enviados para o antigo clube das super-potências, árabes e também ao resto do mundo.


O que há de comum entre eles é uma mensagem clara: os EUA estão assumindo a condição de Império mundial e não admitirão o surgimento de potências regionais ou globais que possam representar uma ameaça a essa supremacia.
O ataque dos Estados Unidos ao Iraque foi uma guerra de natureza muito estranha que, ao mesmo tempo, representou um acerto de contas que não ocorreu no final da Guerra Fria e serviu para Washington enviar uma série de sinais ao mundo.


O que houve foi uma guerra de sinalização com profundos desdobramentos políticos que mexem em praticamente todos os tabuleiros geopolíticos no mundo.


A análise é do professor de Economia Política Internacional, José Luís Fiori, que fez duas palestras em Porto Alegre (nos dias 23 e 26 de maio) sobre os desdobramentos da guerra no Iraque para a ordem mundial.


Segundo Fiori, o que os EUA estão fazendo agora é um esforço de reconstrução de um território perdido nos anos 60 e 70.


Ao proferir a aula inaugural do curso de pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fiori destacou a natureza estranha dessa guerra em torno da qual está ocorrendo um processo de reorganização da conjuntura internacional.


“Assistimos a uma espécie de guerra de um lado só, que levou cerca de um ano sendo organizada e durou apenas dezoito dias”.


Outro traço bizarro do conflito, acrescentou, foi não ter apresentado resultados explícitos do ponto de vista dos seus objetivos declarados.


Até agora não foram encontradas as famosas armas de destruição em massa e o destino de Saddam Hussein permanece incógnito.


Além disso foi uma guerra localizada, que envolveu diretamente apenas três países, mas que teve uma grande repercussão na opinião pública mundial.
O segredo para entender esse caráter estranho do conflito, segundo Fiori, talvez esteja em ver o ataque dos EUA como uma guerra de sinalização.


“E o sinal principal não foi para os iraquianos ou para os movimentos terroristas internacionais, mas sim para outros atores políticos que não estão necessariamente no Oriente Médio.


Em suas duas conferências na capital gaúcha, ele analisou o sentido desses sinais enviados para o antigo clube das super-potências, árabes e também ao resto do mundo. O que há de comum entre eles é uma mensagem clara: os EUA estão assumindo a condição de Império mundial e não admitirão o surgimento de potências regionais ou globais que possam representar uma ameaça a essa supremacia.


O argumento central da mensagem identifica seus principais destinatários. Os EUA atacaram o Iraque com o pretexto de neutralizar armas de destruição de massa que “colocariam em perigo a paz e a ordem mundial”.


Ora, assinalou Fiori, quem detém os principais estoques de armas de destruição em massa do planeta?


“São os pares dos EUA, não a patuléia”, respondeu.


Ou seja, Bush atirou em Saddam, mas seus alvos não estavam exatamente em Bagdá.



Guerra e capitalismo



Apesar das excentricidades envolvidas no conflito, Fiori ressaltou que a guerra não é, em si, uma coisa extraordinária na história e, muito menos, no desenvolvimento do sistema capitalista mundial.


Para sustentar essa afirmação, citou um levantamento realizado pelo historiador Paul Kennedy sobre o número de conflitos militares que assolaram o mundo desde o surgimento do Estado moderno.


No período entre 1480 e 1800, houve uma guerra a cada 2 ou 3 anos (período de origem do sistema capitalista moderno, no qual deu-se a formação dos Estados Nacionais).


De 1800 a 1940, houve uma guerra a cada um ou dois anos.


Depois de 1945, Kennedy registra que a cada 14 meses havia uma nova guerra.
O estudo também identifica a relação entre esses conflitos e o número de vítimas.


No século XVIII, houve 68 guerras e 4 milhões de mortos;


no século XIX, 205 guerras e 8 milhões de mortos;


no século XX, foram 275 guerras e 115 milhões de mortos.


Ou seja, observou Fiori, a guerra tem sido a principal atividade dos Estados Nacionais nos 500 anos de história da idade moderna.


Mais do que isso: é um mecanismo central do sistema em todos os aspectos. O que esses números mostram, segundo ele, são as relações estreitas e profícuas entre a guerra e jogo das trocas no sistema capitalista.


“Tiremos a venda dos olhos. A guerra é uma atividade quase tão essencial quando as atividades propriamente econômicas do sistema capitalista mundial. Esse, talvez, seja o mistério mais profundo desse sistema e de todas as guerras”.



Acerto de contas da Guerra Fria



Fiori ressaltou que nem todas as guerras têm a mesma função e importância. Lembrou que, atualmente, está em curso uma guerra cruel no Congo, que já tem dois milhões de mortos e quase nenhuma repercussão na opinião pública mundial.

É uma guerra na periferia do sistema que, aparentemente, não mexe com os principais interesses geopolíticos das grandes potências do planeta.


O conflito no Iraque é de natureza totalmente diferente.


Fiori sugeriu que o ataque dos EUA representou um acerto de contas de uma guerra excêntrica, que durou 50 anos, que não chegou a acontecer de fato e que não acabou com um tratado entre as partes envolvidas.
A Guerra Fria, explicitou, chegou ao fim sem um tratado que estabelecesse uma reordenação do sistema global, o que foi algo inédito na história.


Fiori lembrou como terminaram alguns dos principais conflitos militares na história recente da humanidade.


O Tratado de Viena eliminou, durante cerca de um século, a guerra na Europa.


Após a Primeira Guerra Mundial, as negociações de Versalhes também definiram novas relações entre os Estados envolvidos no conflito, o mesmo ocorreu ao final da Segunda Guerra Mundial. Para Fiori, a segunda guerra do Iraque é parte de uma espécie de acordo de paz que não houve no final da Guerra Fria entre EUA e União Soviética.


“É um momento de apropriação de territórios que pertenciam de antemão aos EUA por sua vitória gigantesca na Guerra Fria e na primeira guerra do Iraque”, defendeu.



Retomada de territórios perdidos



O que os Estados Unidos estão fazendo agora, disse ainda Fiori, faz parte de um processo de retomada de territórios perdidos nos anos 60 e 70 do século passado.

Neste período, os EUA sofreram derrotas diretas ou indiretas no Vietnã, Irã, Iraque e Afeganistão, reveses que marcaram um momento de perda de hegemonia norte-americana. Essas derrotas, aliadas à crise do petróleo e outros acontecimentos, puseram fim ao que Hobsbawn chamou de era de ouro do capitalismo que se seguiu após o final da Segunda Guerra Mundial.
Na década de 90, logo depois do fim da União Soviética, assinalou Fiori, quase que imediatamente o mundo foi laçado pelo fascínio da utopia globalitária, da paz perpétua e do fim da história.


Com o fim da Guerra Fria, os EUA começaram então a avançar sobre terrenos que haviam perdido.


“Desde 1990, há um movimento mais ou menos agressivo de ocupação desse território, formando um cinturão que vai do norte da Europa até o centro da Ásia. O que está sendo construído nessa região é uma espécie de cordão sanitário com objetivos geopolíticos muito bem definidos”.
Esse movimento geopolítico, na avaliação de Fiori, começa a apontar para uma disrupção no sistema capitalista global.


“Se olharmos o novo mapa militar dessa região, vemos que todos os territórios citados aqui passam a contar com bases militares americanas. Isso deixa claro que já está em desenho a próxima guerra, o próximo inimigo.”


Para identificar o principal destinatário da mensagem enviada desde Bagdá, Fiori lembrou uma tese de Spykeman, um dos principais teóricos da geopolítica dos EUA no início do século passado. Seguindo os passos de seu colega inglês Mackinder, Spykeman falava da importância estratégica de criar um cinturão sanitário cercando e separando a Alemanha da Rússia.


Ou, dizendo de modo mais claro, um cerco completo da Rússia e a sua separação da Alemanha.
Toda geopolítica anglo-americana, enfatizou Fiori, sempre teve como objetivo central evitar a possibilidade de que a Eurásia fosse hegemonizada por um bloco liderado pela Rússia e pela Alemanha.


Essa concepção geopolítica acredita que o coração do mundo está no meio da Eurásia, entre Moscou e Berlim.


Quem controlar o coração dessa região, controlará a Europa e, por conseguinte, o mundo inteiro.


O que está em disputa, então, é o poder global.


Segundo Fiori, esse jogo já dura cinco ou seis séculos e os atores são sempre os mesmos.


No século XIX e na primeira metade do século XX, a questão central era como controlar a Rússia, país que já foi destruído várias vezes ao longo da história e sempre acabou se reerguendo.



Bipolaridade surpreendente



Os primeiros desdobramentos da segunda guerra do Iraque apontam para a continuação dessa disputa.

O conflito teve como um de seus efeitos colaterais uma inesperada aproximação entre França, Alemanha e Rússia, ressuscitando velhos fantasmas europeus.


“Um fato recente que não recebeu a devida atenção é que, depois do posicionamento alemão contra a guerra, os EUA iniciaram um deslocamento de tropas para países da Europa Central. É um movimento sintomático que parece levar o seguinte recado aos alemães: vocês estão de quarentena”, disse Fiori.


A coalizão entre franceses, alemães e russos ainda é superficial, admitiu, e não se sabe qual será o seu futuro.


Mas ela carrega consigo a possibilidade de um reordenamento da geopolítica européia.
Esse redesenho europeu, fruto da ofensiva dos EUA, reforçaria outro imbróglio escondido: não o ajuste de contas da Guerra Fria, mas o agravamento das relações dos EUA com os derrotados da Segunda Guerra Mundial, especialmente Alemanha e Japão.


“No fundo, a arquitetura que sustentou o sucesso do capitalismo pós-Segunda Guerra esteve baseada em uma relação peculiar entre os EUA e os principais derrotados no conflito, constituindo uma espécie de relação proto-colonial entre esses países. Acredito que o segredo para entender a crise econômica atual está no fato de que os EUA abandonaram e passaram a jogar contra a arquitetura que construíram depois da guerra”, propôs Fiori.


“Essa arquitetura”, acrescentou, “foi montada com base em uma complexa estrutura de complementariedades e proteções econômico-militares, que fizeram da Alemanha, Japão e Itália algo excêntrico”.
E complementou: “O que existiu, entre 1950 e 1970, foi uma máquina montada nos três países, ancorada no projeto hegemônico dos EUA. É preciso ter isso em mente para entender por que o Japão e a Alemanha não conseguem mais crescer e não podem sequer fazer políticas keynesianas para tentar reativar suas economias”.


Essa mesma restrição está sendo aplicada aos países em desenvolvimento, como o Brasil, sufocados por uma política econômica que impede completamente o surgimento de projetos nacionais de desenvolvimento.


No fundo de tudo isso, sustentou Fiori, está a doutrina Bush e sua disposição de evitar, por meios econômicos e/ou militares, o surgimento de qualquer potência regional que possa representar um obstáculo aos interesses hegemônicos do Império.



De volta ao início do século XX



O que a doutrina Bush está fazendo, concluiu, é aplicar uma velha máxima mercantilista: quando se trata de impedir o surgimento de um concorrente, antes de lançar as bombas, quebre as pernas econômicas do possível candidato.


A partir dos anos 80, uma única potência hegemônica passou a alavancar a economia global. Neste período os EUA fizeram keynesianismo bélico, investiram pesadamente em sua indústria militar e se prepararam para a guerra. E cresceram ainda mais.


Há cerca de duas décadas que só uma superpotência cresce e as demais permanecem estagnadas.


A dissidência de franceses, alemães e russos por ocasião do ataque ao Iraque deve ser entendida neste contexto.
Para Fiori, o momento é altamente conflitivo, no qual pedaços de território e de mercado estão sendo disputados à força, lembrando a passagem do século XIX para o século XX.


E os atores envolvidos nessa disputa são rigorosamente os mesmos: EUA, Inglaterra, Alemanha, Rússia e França.


Ou seja, as grandes questões políticas e econômicas do início do século XX seguem vigentes e carregam consigo um poderoso fator de conflitividade.
As relações entre EUA e Europa estão passando por alterações significativas cujas conseqüências são difíceis de prever.


Fiori acredita que o projeto da União Européia representa um quebra-cabeça insolúvel neste cenário: “os europeus brigam há pelo menos 700 anos para ver quem hegemoniza o continente. O projeto de uma grande Europa sempre naufragou nas mesmas dificuldades.


Uma delas é a Alemanha, um trauma muito antigo na alma européia.


O que está claro é que a luta pela hegemonia continua a fazer parte desse universo geopolítico e a guerra do Iraque trouxe novos elementos que reavivaram velhas disputas”.


Neste momento, a bola está com os EUA, que estão dando as cartas do jogo e, no Iraque, enviaram uma clara mensagem aos seus pares e ao resto do mundo.


“E se a minha hipótese é correta”, finalizou, “a Alemanha já entendeu o recado”.



[Artigo tirado do canal 'Reportagens' de 'Agência Carta Maior',28 de maio de 2003]

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