quinta-feira, 1 de novembro de 2007

CHOQUE E PAVOR EM BAGHDAD

Massacre em Bagdá



SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ

Ao se chocar contra o solo, numa calçada de terra não muitos metros distante de um ponto de ônibus, um dos mísseis lança uma onda de fogo e ar que destrói a fachada de dois conjuntos comerciais e pelo menos oito veículos num raio de 50 metros.

Com o impacto, dois dos carros viram de ponta-cabeça no ar, para caírem carbonizados e completamente destruídos quase no mesmo lugar em que estavam.
A explosão atinge mais diretamente um pequeno restaurante e uma mecânica e as casas que ficavam sobre estes estabelecimentos.

Do outro lado da rua, onde caiu o outro míssil, parte dos prédios vem ao chão, enquanto as janelas e portas voam primeiro para dentro, depois para fora, esmigalhando todos os móveis que encontram no caminho.
No trajeto, destroem também as pessoas.

Seriam 15 mortos, segundo números do governo iraquiano, entre eles mulheres e crianças.
Os que não morreram carbonizados tiveram o corpo despedaçado pelo impacto.
A reportagem da Folha chegou no momento em que os bombeiros apagavam os últimos focos de incêndio e as ambulâncias recolhiam os últimos pedaços encontrados no chão.

Alguns restos humanos, no entanto, ficaram para trás.
Em frente ao restaurante, num monte de tijolos quase picados, jazia um punho direito com a palma da mão e os cinco dedos fechados.

Poucos metros à esquerda, na entrada de um dos edifícios destruídos, um cérebro humano quase inteiro parecia esquecido perto do rodapé, ladeado por três galinhas brancas estufadas que se embolavam perto da guia da rua e foram mortas pelo ar.
Do outro lado da rua, outra mão decepada.

O horror, o horror.

Perto das 11h30 (5h30 de Brasília) de ontem, o que o Iraque disse ter sido dois mísseis "inteligentes" da coalizão anglo-americana atingiram as duas calçadas da rua Abi Talib, em Al Shaab, uma rua movimentada de comércio de um dos principais bairros residenciais no norte de Bagdá, no maior ataque a atingir civis na capital desde o início do conflito, há uma semana.
A tragédia causou revolta na população local e juntou uma pequena multidão de militares e civis armados em protestos que duraram a tarde inteira.

Se o engano for confirmado, será uma das principais dores-de-cabeça para as forças dos Estados Unidos e do Reino Unido.
Com os bombardeios chegando à casa dos 5.000 só em Bagdá, o número de civis mortos no país todo pode estar perto dos 7.000, segundo o Crescente Vermelho, a Cruz Vermelha nos países muçulmanos.

Na Guerra do Golfo (91), um míssil atingiu por erro um abrigo civil em Bagdá, matando 314. Na época, porém, apenas 10% das bombas e mísseis eram "inteligentes", contra 90% de agora.

"Só Deus! Só Deus!"

"Procure bem, só temos comércio por aqui", gritava Ali Benayam Gatt, 55. A oficina de reparo de automóveis era dele, e o ataque deixou um parente morto e outro gravemente queimado. "Agora, todos estamos pensando que nada impede que a próxima bomba caia na sala de nossa casa."

O prédio militar mais próximo fica a pelo menos um quilômetro do lugar, segundo o governo.
De acordo com Haneed Dulaimi, soldado da defesa civil, o ataque deixou ainda 45 feridos.

"Meu primo estava dentro do restaurante e morreu em pedaços", dizia, resignado, Faris Rashid Ismail, 37, que mora próximo da rua em que os mísseis caíram e correu para o local quando ouviu um barulho de avião seguido de dois estouros consecutivos.

"Mas estou me sentindo consolado, pois sei que ele foi um mártir do islã." Ao seu lado, dezenas de pessoas abraçadas gritavam "Só Deus! Só Deus", pulando sobre a carcaça de um dos carros destruídos e apontando seus fuzis e pistolas para o alto.

O céu parecia colaborar com o que se via em terra -no segundo dia da maior tempestade de areia a atingir Bagdá em cinco anos, estava de cor vermelho-sangue.

Momentos depois, a chuva viria piorar tudo, fazendo do chão uma mistura de sangue, água, areia e partículas do petróleo queimado que o governo iraquiano vem lançando ao ar desde o fim de semana para atrapalhar os aviões da coalizão.

De repente, um soldado apoiou seu fuzil na lama, arranca dos escombros uma das mãos decepadas e pulou num dos buracos feitos pela explosão na calçada.
A mão que suas mãos carregavam era a mais impressionante, tendo perdido todo o resto do membro, à exceção dos cinco dedos, que se mantinham unidos por algum motivo.

O soldado dentro da cratera ergue o resto humano e começa a orar, de cabeça baixa.
Em sua volta, na superfície, estão outros bagdalis armados, igualmente de cabeça baixa, também orando.

Acabada a reza, ele enterra nas cinzas do buraco a mão arrancada, ergue novamente seus braços e canta. Os outros fazem o mesmo: "Sacrificarei minha alma e meu sangue por Saddam".

Se essa guerra é no fundo a batalha que travam George W. Bush e Saddam Hussein pelos corações e mentes dos iraquianos, Al Shaab pode vir a ser o Waterloo norte-americano.
27.3.03

Postado por Ivson
http://www.coleguinhas.jor.br/pensata/2003_03_01_pensata_arquivos.html

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