Um amigo de Saddampor Renato Pompeu
O arcebispo ortodoxo de Bagdá, dom Severius (foto), esteve em São Paulo em agosto.
Ele critica as ameaças americanas.
Mais uma indicação de que a grande mídia detesta novidades que fujam à rotina e que não se enquadrem no unilateralismo da visão ocidentocêntrica dos problemas internacionais: a presença no Brasil, durante agosto, do principal dignitário eclesiástico cristão no Iraque não foi sequer noticiada.
Talvez isso se deva a que não convenha, para o "pluralismo" dominante, divulgar que, para o arcebispo de Bagdá e Basra da Igreja Ortodoxa Síria, dom Severius Hawa, 72 anos – embora ele faça questão de ressaltar que a Igreja não se envolve de modo nenhum em questões políticas –, Saddam Hussein "é muito boa gente. Inteligente, gosta do povo; visita sempre os pobres, entra na casa, vai até a cozinha, abre a geladeira e, se falta alguma coisa, manda comprar na hora, dá dinheiro".
Falando na casa paroquial da Igreja de São João Batista, em Mirandópolis, bairro de classe média na zona sul de São Paulo – onde foi pároco nos anos 1960 –, dom Severius, nascido em Nínive, antiga capital da Assíria, hoje perto do centro petrolífero de Mossul, no Iraque, afirma que "reina cem por cento de liberdade religiosa no Iraque e há, inclusive, uma sinagoga em pleno funcionamento em Bagdá".
Segundo dom Severius, embora sua Igreja não tenha uma posição oficial sobre regimes políticos, o seu rebanho de 700.000 fiéis é constituído de patriotas iraquianos, não havendo "nenhum cristão" entre os grupos de oposição a Saddam.
Na verdade, pouca gente no Ocidente sabe que os cristãos ocupam uma posição estratégica no Iraque.
Basta dizer que o vice-primeiro-ministro, Tariq AZIZ, ex-ministro do Exterior, e o ministro das Obras Públicas, Maan Sarsan, são cristãos.
Essa posição estratégica dos cristãos se deve a que eles constituem uma parte da elite intelectual iraquiana, pois, na maioria, os cristãos são médicos, advogados, engenheiros, professores universitários, muitos deles formados na Inglaterra, antiga metrópole colonial do Iraque.
De acordo com dom Severius, "a Igreja não assume atitude política, mas respeita a autoridade. A Igreja é contra a guerra, a favor da paz; quanto ao povo, tem de cumprir o dever, sem que a Igreja interfira. Nossos discursos pregam a paz, a harmonia, a paciência. Durante a guerra de 1991, todos os bispos da Igreja Ortodoxa Síria pediram à ONU, ao papa João Paulo II e a outras instituições e pessoas que contribuíssem para pôr fim ao conflito. Também pedimos que seja suspenso o cerco comercial ao Iraque e exigimos uma solução pacífica para os problemas do povo palestino".
Diz o arcebispo que "a Igreja não se coloca contra cristãos patriotas", mas que, quando se encontra com Saddam, de quem se considera amigo pessoal, "pregamos sempre a paz, a concórdia, o amor. Os cristãos são a favor da paz. A política dos Estados Unidos não segue a doutrina de paz de Jesus. O Iraque é uma terra abençoada: tem petróleo, tem fósforo, tem ferro. É isso o que os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Europa querem".
Quanto ao Kuwait, dom Severius diz de novo que a Igreja não tem posição sobre o assunto, mas que os cristãos iraquianos julgam, como os demais iraquianos, que o Kuwait faz parte de seu país e dele foi separado por interesses, na época, da Grã-Bretanha.
Afirma o prelado que, na verdade, na Arábia Saudita, aliada do Ocidente, é que não existe de modo nenhum liberdade religiosa, a ponto de que não há nenhuma igreja cristã em território saudita.
Também no Kuwait a liberdade religiosa não é plena: mais de uma vez, as autoridades estiveram prestes a fechar as duas únicas igrejas cristãs do país, uma católica romana e a outra ortodoxa grega.
Sempre segundo o arcebispo de Bagdá e Basra, no Iraque não há restrições a costumes ocidentais.
Enquanto na Arábia Saudita e no Kuwait as mulheres são obrigadas a cobrir o corpo todo, no Iraque circulam moças até de minissaia.
Na verdade, dom Severius acha que, no Iraque, há "muita liberdade".
Ele ressalta, por exemplo, que o governo de Saddam reservou 2 milhões de dólares para a restauração do Mosteiro de São Mateus, em Mossul, que data de 393 d.C.
Além dos ortodoxos sírios, existem outros cristãos no Iraque: católicos romanos, nes-torianos, coptas, armênios.
O próprio irmão do arcebispo, Hanna Hawa, é oficial reformado do Exército do Iraque.
Dom Severius conta que, quando era bem jovem, seu pai teve uma parada cardíaca e foi dado como morto pelos médicos.
No entanto, o pai mais tarde "despertou" e contou que, em sonhos, tivera a visão de um homem chegando a cavalo; era Jesus, que dizia: "Levanta!"
E o pai levantou.
A partir daí, o pai, que já era um fiel religioso, passou a freqüentar ainda mais a Igreja e as obras, levando os filhos – e o menino Severius decidiu dedicar-se à vida sacerdotal.
Fez o seminário em Nínive e foi enviado ao Brasil em 1961, como pároco no bairro paulistano de Mirandópolis.
O culto em sua Igreja é feito em árabe, em siríaco ou aramaico (a língua em que Jesus falava), a língua original de seu povo.
Ficou no Brasil até 1970, funcionando, segundo seus antigos paroquianos e paroquianas, como "um anjo bom", que, além de oficiar os cultos, visitava as famílias, agindo como um segundo pai ou irmão que ajudava a resolver os conflitos familiares.
A Igreja Ortodoxa de que dom Severius faz parte tem 50 milhões de fiéis no mundo inteiro, inclusive 2.000 famílias no Brasil, em São Paulo, Campo Grande e Belo Horizonte.
Segundo o arquiteto e escritor Ibrahim Sowmy, já falecido, nascido na Turquia e radicado no pós-Segunda Guerra em São Paulo, onde ajudou a construir a Igreja de São João Batista, "sírio", "siríaco" e "assírio" são a mesma palavra: entre Síria e Assíria existe a mesma diferença que entre Corão e Alcorão, ou seja, a ausência ou a presença do artigo definido.
Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor de Memórias de Uma Bola de Futebol.
http://carosamigos.terra.com.br/da_revista/edicoes/ed66/renato_pompeu.asp
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