quarta-feira, 22 de agosto de 2007

QUEM SÃO OS "MOCINHOS" OU OS "BANDIDOS"?

"A Ira da Águia" entre o presente e o futuro

Reprodução
A Ira da Àguia, Humberto Loureiro, conta história que se passa em 2017 em que os EUA decidem de uma vez por todas abocanhar os recursos naturais do Brasil

A Ira da Águia, Humberto Loureiro.

Porto Alegre: Literalis Editora, 2005,
350 páginas.

Chegou a hora de resenharmos o segundo romance brasileiro de guerra futura, posterior à invasão norte-americana do Iraque.
A Ira da Águia, aparentemente livro de estréia do médico carioca e engenheiro civil Humberto Loureiro, um ex-funcionário da Petrobrás, é em sua maior parte ambientado em 2017, quando a Amazônia brasileira enfrenta processo de internacionalização por trás de uma fachada de ajuda humanitária internacional.
Quando o Presidente da República, Carlos Brandt, tenta pôr um basta nessa situação, o país passa a sofrer a represália diplomática e militar dos Estados Unidos. Uma esquadra com um porta-aviões nuclear zarpa rumo à foz do Amazonas.
Nesse ponto, o romance faz uma digressão para o passado, contando a trajetória de vários personagens importantes para o contexto conflituoso de 2017, particularmente o jovem engenheiro e oficial de Marinha Norton Tavares de Mello, que fez, por acidente, uma descoberta tecnológica revolucionária e desestabilizadora em termos estratégicos: uma espécie de "raio da morte" que acelera brutalmente a progressão da corrosão dos metais.
O raio é usado pela primeira vez para deter o avanço da esquadra americana.
Esse detalhe empurra o romance para o terreno do techno-thriller popularizado por Tom Clancy, e pela estrutura da narrativa fica clara a influência do autor norte-americano e de outros praticantes desse tipo de ficção - como Ralph Peters e Craig Thomas.
O enredo se desenvolve em várias linhas simultâneas, que se sucedem em situações que vão se desdobrando e se concluindo, encorpando o suspense.
Na maioria das vezes, envolvem investigações de agentes secretos e tropas de elite americanas que tentam desvendar, pelo seqüestro e pela tortura de brasileiros em território nacional, o segredo da nova arma definitiva.
Cenas de combate naval chamam a atenção.
Loureiro fez uma boa pesquisa.
Considerando o quanto um "senso de enredo" é raro na literatura brasileira, ele se destaca acentuadamente, mas seu romance difere, em vários sentidos, do techno-thriller padrão.
Em primeiro lugar, o desenvolvimento é muito ligeiro. A norma dos romances de ficção popular norte-americana existe que a maioria, senão todas as situações da trama, recebam a mesma medida de desenvolvimento.
Em A Ira da Águia, embora o enredo avance em bom ritmo, há muita economia nas soluções dos dilemas e conflitos, e na caracterização dos personagens e situações. Se a norma fosse obedecida, o romance subiria das suas 350 páginas, para umas 650...
O outro aspecto é que o maniqueísmo nos romances americanos tende a ser atenuado ainda que os posicionamentos de heróis e vilões em geral seja claro. Alguma medida de ambigüidade moral costuma ser colocada, assim como o reconhecimento da legitimidade de algumas questões que movem os antagonistas dos heróis.
Um terrorista palestino pode ter suas motivações bem expostas, ou um general russo as suas, de modo que o leitor chegue a compreender os seus compromissos. Não é preciso dizer que uma enorme força dramática surge desse recurso.
Não é o caso com Loureiro, que repete com freqüência cenas em que Carter, o presidente americano, dialoga com seus assessores na Casa Branca e expõe sua ganância, seu desejo de submeter qualquer oposição terceiro-mundista e de conquistar e amealhar recursos naturais brasileiros sem qualquer véu de eufemismos ou de racionalizações.
Como está, o jogo internacional também é reduzido a quais nações os EUA podem deslocar no tabuleiro contra os brasileiros que insistem em desafiar o gigante militar: "Não podemos ficar de braços cruzados, vendo um país do Terceiro Mundo contrapor-se, abertamente, ao nosso sistema de vida, aos nossos interesses", não se cansa de repetir, o presidente americano.
Nesse jogo, o FMI é arma empunhada pelos EUA, assim como a OMC e o Conselho de Segurança da ONU. Loureiro também põe no mesmo saco ações internacionais tão diferentes quanto a intervenção da Otan na Iugoslávia para prevenir o genocídio da minoria albanesa, e a recente invasão do Iraque. Seriam duas faces da mesma moeda imperialista.
O reducionismo dos atores da trama é também interno ao Brasil - o livro parece concordar com Hugo Chavez:
"Nossos congressistas rezam pela cartilha norte-americana. Tudo o que eles querem, o congresso aprova...", afirma o Presidente Carlos Brandt, ao preparar um plano secreto com o Almirante de Esquadra Fernando Tavares, a eminência parda por trás do projeto de equipar fragatas brasileiras com o raio da morte.
O plano envolve o desvio de dinheiro da compra de vasos de guerra obsoletos dos americanos, para uma conta em paraíso fiscal, de onde - sem o conhecimento seja do corrupto congresso brasileiro, seja dos norte-americanos - financiariam a equipagem das fragatas. É um uso original das veredas costumeiras da corrupção, para realizar os objetivos da segurança nacional, aparentemente inalcançáveis por meios democráticos e transparentes. Ironia.
É claro que a exposição crua de uma verdade indizível freqüentemente é um recurso muito forte em uma criação literária.
Mas ao repeti-lo toda hora, o romance banaliza o recurso.
Enfim, a outra diferença de A Ira da Águia em relação ao techno-thriller americano é a falta de um herói em torno do qual a ação, por mais dispersa em linhas narrativas paralelas que seja, acaba orbitando.
Norton Tavares de Mello não um Jack Ryan, de Clancy.
Eu me arrisco a dizer que é no temor da apropriação da Amazônia por essa estereotipada ganância americana que se encontram as preocupações nacionalistas tanto da esquerda quanto da direita brasileiras, mas A Ira da Águia deixa patente o esquerdismo do autor, que põe na boca do Almirante Tavares uma linha de diálogo como esta: "O princípio fundamental do Capitalismo só protege quem tem o capital."
Mais tarde, quando Brandt revela ao povo brasileiro a natureza da ameaça americana, é da classe trabalhadora que vem o seu maior apoio, contra a vontade dos vendilhões do Congresso.
A inspiração no momento presente também é clara, apesar da década que nos separa do contexto do livro: a pista mais óbvia está na escolha dos nomes de certos personagens, como Clive Powers (Colin Powel), Madeleine Waters (Madeleine Albright, ex-embaixadora americana na ONU) e Francisco Mercadante (Aloizio Mercadante) e Miro Gomes (Ciro Gomes), na política brasileira do futuro.
Alguns nomes de militares americanos são gozadores, como o do Almirante Flood (flood = inundação) e do General Shelley, que, presume-se, seja da artilharia (shell = obus).
Mas as trezentas páginas faltantes se fazem sentir.

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